Seja por imaturidade ou pelas numerosas deficiências do sistema educacional brasileiro (desde a educação infantil até o ensino médio) observa-se um despreparo dos estudantes para o ensino superior. Não está claro qual é a postura esperada de um estudante universitário. E no caso da música essa postura ideal está ainda menos clara.
Tradicionalmente o ensino de música no Brasil se deu através de conservatórios. Segundo Eleide G. Castilho, é durante o período Pombalino (1760-1808) que surgem os conservatórios de música no Brasil, “...visando mais o aprendizado técnico da música [do que o ensino funcional praticado até então pelos jesuítas para catequizar indígenas]” (PINTO, 1998, p.14). E desde então a pedagogia musical brasileira apenas reproduziu os padrões europeus de transmissão de conhecimento. No século XX, sugiram significativas mudanças nos parâmetros de ensino musical europeu, principalmente na musicalização, e isso também refletiu em parte do ensino musical do Brasil. Mas esses novos parâmetros ainda hoje são desconhecidos por muitos conservatórios nacionais. A força da tradição nessas instituições dificulta muito transformações desse nível, pois isso afetaria enormemente o tipo de ensino ali praticado.
Belo Horizonte já teve um conservatório. A partir de 1925 o Conservatório foi gradativamente ganhando expressão até que em 1962 entrou para UFMG e em 1997 veio para o Campus Pampulha. Digo que o conservatório veio, porque muito da mentalidade “conservatória” permanece. E também porque não houve um desejo pronunciado de adaptar esse conservatório para sua nova realidade universitária, como vocês podem checar nesse resumo histórico aqui:
http://www.pdfqueen.com/html/aHR0cDovL3d3dy5tdXNpY2EudWZtZy5ici90ZXh0b3MvaGlzdG9yaWEucGRm
De acordo com definições “wikipédicas”, “uma universidade é uma instituição pluridisciplinar de formação dos quadros de profissionais de nível superior, de pesquisa, de extensão e de domínio e cultivo do saber humano.”
E nossa própria universidade diz que “A Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), nos termos do seu Estatuto, aprovado pelo Conselho Universitário em 5 de julho de 1999, tem por finalidades precípuas a geração, o desenvolvimento, a transmissão e a aplicação de conhecimentos por meio do ensino, da pesquisa e da extensão, compreendidos de forma indissociada e integrados na educação e na formação técnico-profissional dos cidadãos, bem como na difusão da cultura e na criação filosófica, artística e tecnológica.”
E também que “visando ao cumprimento integral das suas finalidades estatutárias e ao seu compromisso com os interesses sociais, a UFMG assume como missão gerar e difundir conhecimentos científicos, tecnológicos e culturais, destacando-se como Instituição de referência nacional na formação de indivíduos críticos e éticos, dotados de sólida base científica e humanística e comprometidos com intervenções transformadoras na sociedade e com o desenvolvimento sustentável.”
Muito além da função inicial do Conservatório Mineiro de Música de “ministrar a instrução musical em todos os seus ramos, formando professores de música, de instrumentos e de canto, compositores e regentes de orquestra”, não é mesmo?
Me parece que não são muitos os que compreendem a abissal distância entre o ensino de música do conservatório e da universidade. E, a meu ver, a falta dessa necessária compreensão gera equívocos na avaliação do ensino do nosso curso.
A disciplina “História e Música”, por exemplo, é ofertada atualmente com uma visão transversal da história da música ao contrário da narrativa histórica cronológica, antigamente adotada. Essa abordagem, de acordo com uma de suas ementas, privilegia a compreensão da música a partir de múltiplos focos de análise a fim de incentivar uma visão crítica do estudante sobre o processo histórico de produção musical. Mas a antiga perspectiva de educação, especialmente a difundida (e ainda não exterminada) pelos conservatórios, defende a transmissão passiva de conteúdo através da descrição eurocêntrica evolucionista da história da música européia ocidental. Pois no entender dessas instituições, o que o estudo da história da música deveria oferecer a um instrumentista, por exemplo, é o conhecimento dos períodos históricos em que as peças que ele interpreta foram produzidas.
Não se trata de discutir sobre as preferências individuais de cada estudante ou professor. Mas de refletir: qual modelo de ensino melhor se alinha com o papel da UFMG? Uma atuação crítica e participativa dos professores e alunos analisando a história da música a partir de uma perspectiva de processo inacabado, isto é, considerando inevitável a contribuição dos alunos para esse processo e assim não apenas incluindo, mas evidenciando a responsabilidade desses estudantes na construção dessa história ou uma postura de receptividade passiva do corpo discente, visando principalmente à assimilação de conteúdos consagrados da história da música européia ocidental reproduzida unilateralmente ao longo de séculos de colonialismo no Brasil? A primeira se aproxima da disciplina “História e Música” de que dispomos hoje e a segunda da História da Música ensinada em conservatórios e escolas de música Brasil afora.
O problema está na atual demanda de alguns alunos e professores pela retroação através do restabelecimento da História da Música. Isso demonstra que as atribuições da universidade não foram compreendidas apropriadamente.
Chimamanda Adichie, uma escritora nigeriana, discursou em uma conferência internacional sobre a perversidade da narrativa unilateral da história de um povo falando de como preconceitos absolutamente infundados são tomados por verdade devido à falta de diversidade de perspectivas sobre algo.
Espero que nossa posição privilegiada dentro de uma instituição como a UFMG não seja desperdiçada em retrocessos esterilizantes e que possamos, pelo contrário, produzir conhecimento com cada vez mais lucidez e liberdade.
Barbara Viggiano, aluna do 7º período de Bacharelado em Flauta
Excelente texto, Bárbara!
ResponderExcluirInfelizmente muita gente pensa que estamos contra o tipo de música feita nos conservatórios. A música não tem culpa das outras loucuras do mundo dos homens!
Queremos a inclusão, não a exclusão. Queremos a liberdade, a ampliação, o diálogo.
Que todas as músicas sejam sempre benvindas!
Falou bonito... Realmente tem razão em muitas coisas. mas quanto à História acho que está equivocada. Se nossa cultura fosse diferente, e nos permitisse chegar até a universidade tendo um embasamento geral da trajetória musical ao longo dos tempos, até concordaria. Mas a grande maioria das pessoas chegam até a universidade sem saber quase nada do assunto!!! Tradicional réplica para essa afirmação? "Se quiser aprender história da música pegue um livro e leia". Pois bem,o que digo em resposta a isso: Se eu quiser aprender sobre os Maxakali eu vou encontrar muitos livros bons sobre o assunto também. Mas a questão é: eu não quero aprender nada sobre isso! Tem tantas coisas mais úteis que eu poderia estar aprendendo aqui! Onde está a flexibilização de cursos (coisa de universidade, não de conservatório) nesse caso? Onde não podemos escolher que história da música melhor nos atende. Acho que as pessoas deveriam poder escolher qual história pretendem fazer, já que existem várias dessas disciplinas na grade. Como disse antes, concordo com muita coisa do que disse, mas nesse ponto discordo plenamente
ResponderExcluirEi Anônimo.
ResponderExcluirEu tb já n penso exatamente da forma como me posicionei nesse texto. Pois ele deu origem a uma discussão sobre o tema no grupo de emails do DA: musica-ufmg@googlegroups.com.
Se vc se interessar, pode me mandar um email (baflauta@gmail.com) pra eu te botar na lista.
Seria muito proveitoso pra discussão ter opiniões diversas sobre o assunto. Quem sabe assim ele não se torna menos polêmico?
Um abraço,
Barbara
Barbara,
ResponderExcluirMuito bom o texto! Eu concordo com as aflições, mas eu acredito que o problema em geral na escola de musica se reflete muito mais quanto a formação profissional dos professores das disciplinas teoricas. Muitas vezes a função dupla, músico e pesquisador academico, nao possibilita que os mesmos tornem especialistas sobre a materia dada e por isso muitas vezes a disciplina se torna unilateral e superficial. A falta de didatica reflete tambem a formação escassa que muitos professores tem na area.
Irene
Irenita,
ResponderExcluiracho que não tem problema eles serem músicos e pesquisadores não. Mesmo pq a maioria deles dá enfoque numa coisa ou noutra. De qualquer forma, acho que essas atividades (performance, estudo e pesquisa) só ajudam nossos professores a serem profissionais mais competentes e contribuirem mais para o nosso aprendizado. Mas concordo que falta didática à muitos professores, pois em geral isso não é muito valorizado em nossa Escola, infelizmente.
Barbara